A partir da promulgação da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), norma de estatura constitucional, não é mais possível manter qualquer restrição ao direito ao trabalho da pessoa com deficiência, incluídas as pessoas com deficiência intelectual, metal ou grave na condição de dependente segurado. Isso porque, a CDPD sustenta-se em princípios, entre outros, norteadores da dignidade humana, autonomia e independência, não discriminação e igualdade de oportunidades (Artigo 3). Além disso, assegura igual acesso de pessoas com deficiência a programas e benefícios de aposentadoria (Artigo 28, item 2, letra e). Referidos comandos impõem à sociedade a construção de um ambiente propício para a plena realização de todos os direitos das pessoas com deficiência, dentre eles o direito de trabalhar e produzir, resguardando, entre outros, o direito aos benefícios de aposentadoria e/ou de ser dependente segurado da Previdência Social.
Até o ano de 2011 o dependente segurado com deficiência intelectual e mental não podia exercer qualquer atividade laborativa remunerada.
Pois bem, seguiram-se as alterações da Lei n° 12.470/2011 (também conhecida como lei Romário porque foi seu principal articulador) sobre a lei previdenciária nº 8.213/91, especificamente nos artigos 16, incisos I e III, 72, parágrafo 3° e 77, parágrafo 2°, incisos II e III, e parágrafo 4°, tendo como objetivo preservar o direito ao trabalho das pessoas com deficiência intelectual e mental, dependentes do segurado: “filho ou irmão que tenham deficiência intelectual ou mental e que tenham sido declarados judicialmente absoluta ou relativamente incapazes”. Foi a consagração da garantia do direito de trabalhar do dependente segurado!
A significativa mudança trazida pela lei Romário, mantendo incólume o direito de trabalhar, há muito vinha sendo reivindicada pelo movimento organizado de pessoas com deficiência e só se tornou possível pela positiva circunstância política criada junto ao Congresso Nacional, especificamente pela Frente Parlamentar do Congresso Nacional em Defesa das Pessoas com Deficiência e Deputados Rosinha da Adefal e Romário. Ressalte-se que a medida não acarretou aumento de qualquer despesa para os cofres públicos, principalmente porque o pagamento da pensão ao segurado é fato previsível para a Previdência Social. Ao exercer uma atividade remunerada o dependente/trabalhador com deficiência passará para a condição de contribuinte obrigatório da Previdência Social.
A nova ordem da Lei n° 12.470/2011 redirecionou a imprópria designação de “inválido” não mais a atrelando à condição da deficiência da pessoa e a sua capacidade para o trabalho. Passou a permitir que os dependentes com deficiência intelectual e com deficiência mental ingressassem no mundo do trabalho com a redução de 30% do valor da pensão. Com isso, passaram também à condição de contribuintes do sistema previdenciário. Lembre-se que essas duas condições de beneficiário e contribuinte são permitidas, com natureza semelhante a outras previstas na própria lei previdenciária.
A Lei n° 12.470/2011 dirigiu-se para duas categorias de pessoas com deficiência: a deficiência intelectual e a deficiência mental. Portanto, em sintonia com a CDPD. Quanto à segunda natureza de deficiência, a mental, nada mais fez do que consolidar a evolução do pensamento mundial por meio de decisões de associações e da própria agência da Organização Mundial da Saúde que sempre incluiu como deficiência a deficiência mental associada à saúde mental.
As pessoas com deficiência de natureza intelectual (antes chamada no Brasil de deficiência mental) são aquelas de comprovado déficit cognitivo porque o seu funcionamento intelectual é significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: comunicação, cuidado pessoal, habilidades sociais, utilização dos recursos da comunidade, saúde e segurança, habilidades acadêmicas, lazer e trabalho. Ao ampliar e incluir também as pessoas com deficiência de natureza mental, relacionada à saúde mental, a CDPD resgata antiga reivindicação do movimento de pessoas com doença mental. A concepção de deficiência mental está ligada às funções mentais do corpo e que podem gerar transtornos mentais. São exemplos, a esquizofrenia, depressão, síndrome do pânico, transtorno obsessivo-compulsivo, paranóia, mania, entre outros, controlados por meio de medicamentos.
Lembre-se que a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), Lei n° 13.146/2015 (LBI), repete a mesma previsão da CDPD quanto à natureza das deficiências no artigo 2º e remete à avaliação da deficiência, quando necessária, de conteúdo biopsicossocial baseada nos mesmos pressupostos da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF).
Com a proposição da Lei n° 12.470/2011 ficou definitivamente vencida a restrição de acumulação da pensão do dependente segurado com qualquer espécie de remuneração, inclusive aquela decorrente de um contrato de trabalho ou de um contrato de aprendizagem, com a carteira de trabalho (CTPS) assinada, ou ainda a de trabalho autônomo e cooperativado. A concepção previu que a pessoa com deficiência intelectual ou com deficiência mental que optasse por trabalhar teria a redução de 30% do valor da pensão, enquanto perdurasse o vínculo de emprego, ou o trabalho por conta própria, ou ainda os ganhos por pertencer a uma cooperativa. Havia ainda a referência na Lei n° 12.470/11 sobre a necessidade de declaração judicial de interdição parcial ou total que resultava na restrição da capacidade legal da pessoa, oque ocasionava limites à capacidade civil da pessoa com deficiência.
Para o direito do trabalho a capacidade civil da pessoa com deficiência intelectual ou da pessoa com deficiência mental nunca foi preponderante pois a pessoa interditada parcial ou totalmente (segundo o antigo regime do Código Civil) ou em situação de curatela (segundo a previsão do novo regime da LBI) não tem qualquer impedimento para obter a carteira de trabalho (CTPS) ou tê-la assinada pelo empregador, podendo exercer uma profissão, praticar um ofício, trabalhar. E não poderia ser diferente porquanto, o direito ao trabalho está baseado em valores constitucionais de dignidade da pessoa humana, sociais do trabalho e no princípio da não discriminação, os quais não restringem a atividade laboral da pessoa.
Coube à agência pagadora da pensão do dependente segurado (o INSS) criar mecanismos próprios de controle para a redução da pensão em caso de atividade remunerada, e/ou restabelecimentos dos valores integrais da pensão em caso de extinção da relação de trabalho ou da atividade remunerada e/ou empreendedora, com base das informações constantes no Cadastro Nacional de Informações Sociais – CNIS sobre os vínculos e as remunerações dos segurados, a exemplo do já fazia para o cálculo do salário de benefício, comprovação de filiação ao Regime Geral de Previdência Social, tempo de contribuição e relação de emprego (artigo 29-A da lei n° 8.213/91).
Com os princípios norteadores da CDPD (Artigo 3), o direito ao trabalho (Artigo 27) e oigual acesso de pessoas com deficiência a programas e benefícios de aposentadoria (Artigo28), novas alterações ocorreram na Lei n° 8.213/1991, por meio Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (artigo 101), que definitivamente coloca a pessoa com deficiência intelectual ou mental ou grave como dependente do segurado, sem qualquer necessidade de restrição à capacidade civil. Ou seja, a pessoa com deficiência não precisará ser colocada em situação de curatela para ser inscrita como dependente do segurado no sistema previdenciário. Lembre-se que essa inscrição deverá ser feita com o segurado ainda em vida.
Além disso, a Lei n° 13.183/2015, publicada posteriormente à LBI, acrescentou o parágrafo 6º ao artigo 77 da Lei n° 8.213/1991 garantindo o direito à pensão integral pelo dependente com deficiência intelectual ou mental ou com deficiência grave, mesmo que este tenha um trabalho remunerado ou seja microempreendedor. Isso significa que a pessoa com deficiência intelectual/mental/grave pode ingressar no mundo do trabalho sem qualquer alteração no valor de sua pensão previdenciária e acumular os valores recebidos da pensão e da remuneração recebida por exercer uma atividade laborativa.
Lei n° 8.213/1991 Art. 16
São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave;
III – o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave;
Art. 77
A pensão por morte, havendo mais de um pensionista, será rateada entre todos em parte iguais.
§2o O direito à percepção de cada cota individual cessará:
II – para o filho, a pessoa a ele equiparada ou o irmão, de ambos os sexos, ao completar vinte e um anos de idade, salvo se for inválido ou tiver deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave;
§6º O exercício de atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual, não impede a concessão ou manutenção da parte individual da pensão do dependente com deficiência intelectual ou mental ou com deficiência grave Brasília, Maio de 2016.
*Maria Aparecida Gugel é Subprocuradora-geral do Ministério Público do Trabalho e Membro Auxiliar do Núcleo de Atuação Especial em Acessibilidade (NEACE) do Conselho Nacional do Ministério Público.
Autora dos livros Pessoas com Deficiência e o Direito ao Concurso Público, editora UCG, 2006; Pessoa com Deficiência e o Direito ao Trabalho: Reserva de Cargos em Empresas, Emprego Apoiado. Florianópolis : Editora Obra Jurídica, 2007; Deficiência no Brasil: uma abordagem integral dos direitos das pessoas com deficiência. Org. Maria Aparecida Gugel, Waldir Macieira e Lauro Ribeiro. Florianópolis : Editora Obra Jurídica, 2007; Pessoas Idosas no Brasil: Abordagem sobre seus direitos. Org. Maria Aparecida Gugel e Iadya Gama Maio. Brasília : Editora Instituto Atenas, 2009.